Nos países de moderna civilização e adiantada cultura a polícia é uma organização civil, integrada por funcionários civis, regidos por regulamentos próprios ao serviço público civil, que realiza o ciclo completo de polícia, isto é, o desempenho conjunto da investigação criminal ou polícia judiciária e a execução do policiamento uniformizado destinado à prevenção criminal pela presença ostensiva dos policiais nas ruas.
Assim ocorre no Reino Unido, Alemanha, Áustria, Holanda, Bélgica, Suíça, Suécia, Dinamarca, Finlândia, Grécia, Rússia, nos países da Europa Oriental e nos Estados Unidos. Exceção, apenas, dos países da Europa latina onde existem gendarmarias, corporações militares empregadas no policiamento, com ciclo completo de polícia. O predomínio dessas corporações militares estabeleceu-se na primeira metade do século XX no contexto das diversas ditaduras fascistas instaladas. Após questionamentos surgidos no âmbito da União Europeia, corporações com estatuto civil como a Polícia Nacional da França, a Polícia de Estado, na Itália e o Corpo Nacional de Polícia da Espanha, passaram a assumir o protagonismo do serviço policial nos grandes centros urbanos e áreas metropolitanas dos seus países.
Na América Latina, o ressurgimento da democracia chilena expresso na sua Convenção Constitucional, resultou na deliberação para a extinção dos “Carabineros de Chile”, gendarmaria que desde a ditadura de Pinochet vinha se mostrando inadequada para a prestação do serviço policial ao cidadão.
Com o novo estatuto do funcionalismo civil e novo modelo de formação profissional esses policiais terão a oportunidade de prestar condizentes serviços à sociedade civil e à democracia.
Não poderia ser de outro modo em países onde a consciência jurídica da população resulta de uma cultura secular. A POLÍCIA é um serviço público próprio da administração civil que serve a sociedade civil, para garantir a segurança das pessoas e do seu patrimônio em decorrência dos direitos de cidadania assegurados pelas cartas constitucionais. Torna-se impróprio o emprego de corporações militares para exercerem essa missão genuinamente civil de polícia: nessas forças predomina o espírito de casta, distanciando os seus integrantes do cidadão comum; estão sujeitas à legislação militar, inclusive à justiça militar para julgamento de crimes praticados contra civis durante o serviço (no Brasil, com algumas poucas exceções); a sua formação belígera, peculiar das Forças Armadas, acaba influenciando negativamente no trato com a sociedade; inexiste o livre acesso do cidadão aos quarteis e aquartelamentos, diferentemente das demais repartições públicas; torna-se pesada e dispendiosa a estrutura das suas organizações, com os seus desdobramentos hierárquicos que exigem muitas pessoas para a manutenção ou prestação de determinados serviços.
No Brasil, juristas no início do século XX idealizaram o modelo de polícia para a república e para a democracia: Antônio Augusto Cardoso de Castro, Alfredo Pinto, Leoni Ramos. Geminiano da Franca, os três primeiros, futuros ministros do Supremo Tribunal Federal, se inspiraram nas instituições francesas, até hoje representadas pela respeitada Polícia Nacional, para reorganizar a Polícia Civil do Distrito Federal, modelo para as demais coirmãs do país. O comissariado, representado aqui pela delegacia de polícia, o "gardien de la paix", aqui o guarda civil, as especializações da perícia criminal com a criação dos Gabinetes, Médico-Legal, Gabinete de Identificação e Gabinete de Perícias Criminais, a formação profissional através da Escola de Polícia, o Museu, elo de ligação com a comunidade para difusão de experiências, as investigações especializadas a cargo das delegacias auxiliares e a magnífica sede construída no legítimo estilo eclético francês pelo mais afamado arquiteto brasileiro, Heitor de Mello. Essa estrutura fazia da polícia civil uma polícia de ciclo completo, onde delegacias a par de desenvolverem o trabalho de polícia judiciária, orientavam o policiamento uniformizado da Guarda Civil, nas suas respectivas circunscrições.
Durante sessenta anos tivemos uma polícia que serviu de modelo para países estrangeiros, inclusive para a polícia portuguesa e de outros países da América. Em 1964, o golpe de estado implantou um governo militar que perduraria por 25 anos.
Nesse novo contexto indagaram-se os novos senhores do poder sobre os destinos das polícias civis, organizações estaduais armadas mas desenquadradas dos ditames da caserna e, portanto, para eles "pouco confiáveis". Além disso, pouco tempo antes, em decorrência da criação do Estado da Guanabara, houve uma maciça opção de policiais do antigo Distrito Federal pela subordinação ao governo federal, ainda sob a presidência do presidente deposto João Goulart.
Assim, o governo, pelas afinidades existentes, decidiu confiar às milícias estaduais a execução do policiamento ostensivo uniformizado. Refizeram a sua legislação, deram-lhes a exclusividade no desempenho dessa atribuição e colocaram um oficial do Exército no comando de cada uma delas.
A Constituinte de 1988 seria a oportunidade para corrigir erros e distorções, mas no tocante às ideias e propostas para a segurança pública mostraram-se despreparados tanto os constituintes quanto os representantes das polícias civis, que deveriam apresentar um novo sistema de defesa social condizente com o mundo contemporâneo e democrático. Os profissionais de polícia não se mobilizaram para a luta pelo ciclo completo, que salvaria o Brasil da ineficiência policial.
Nosso sistema de segurança pública, decorrente do disposto no artigo 144 e seus parágrafos da Constituição Federal é realmente único e o mais ineficaz do planeta. Nas polícias de ciclo completo a repartição policial ou delegacia de uma circunscrição desenvolve as investigações criminais e realiza o policiamento uniformizado, ambos direcionados à prevenção e repressão da incidência criminal. As ações policiais se apoiam e se completam na busca dos melhores resultados, porque essa unidade é a única responsável pela segurança pública na sua área.
No nosso atual sistema não existem responsáveis individualizados pela segurança de uma determinada área porque os limites territoriais estabelecidos para os batalhões da polícia militar não são os mesmos determinados como circunscrições policiais das delegacias.
Nos estados brasileiros existe uma desproporção entre os efetivos das suas duas polícias. A investigação policial requer um número de policiais proporcional a incidência criminal do estado, porque cada investigação é um trabalho individual e, às vezes, moroso. Pouco se cuidou de assegurar a admissão do pessoal necessário para atender essa atribuição específica. As polícias civis contam com um número insuficiente de servidores para reprimir através do exercício da polícia judiciária a criminalidade crescente, decorrente do aumento da população, dos problemas sociais e das carências policiais.
Já as polícias militares, pela sua ostensividade, contam com o apoio dos governadores para engrossarem as suas fileiras. Criaram doutrina, formularam estratégia e estão se transformando em enormes corporações, cujo efetivo já disponibilizam para atividades típicas de polícia judiciária através de investigações conduzidas por milicianos.
Os efetivos tornam-se fatores determinantes para a expansão das competências e serviços. Os dirigentes das polícias civis ao se descuidarem do requerido aumento do número de funcionários das suas corporações determinam o futuro das mesmas. Em alguns estados, certamente pela maior disponibilidade de pessoal, as polícias militares estão sendo autorizadas a lavrar o termo circunstanciado da Lei n° 9.099/95, forma simplificada de processar para encaminhamento a juízo a maioria das infrações penais. Portanto, chegaram ao ciclo completo de polícia, faltando-lhes a posse das delegacias policiais, onde, com maior conforto para o cidadão viabilizarão esse atendimento policial.
E a polícia civil, como ficará se não acompanhar as exigências da segurança pública? Terá o destino de uma polícia judiciária tipo portuguesa, ainda com maiores limitações na execução do seu trabalho? Nesse contexto, realça a insensibilidade das diretorias das associações de delegados, aferroadas apenas à manutenção do inquérito policial sob a presidência do delegado, mas esquecidas do alcance social e institucional da implantação do ciclo completo na polícia civil.
Ou seja, os comportamentos atuais conduzem ao estabelecimento em cada estado de uma polícia militar de ciclo completo e de uma agência civil de investigações especializadas, de restrita atuação e operacionalmente dependente da primeira.
Penso que para superar as falhas e contradições originadas no atual sistema de segurança pública do país, inclusive a existência de uma organização militar empregada no policiamento civil e as questões de desentrosamento e ineficiência policiais, torna-se necessário o empenho de todos os segmentos representativos das polícias civis e demais cidadãos para mostrar à sociedade da conveniência de efetivar-se uma reforma constitucional atribuindo o ciclo completo às polícias civis.
Nessa campanha já contam com o apoio de diversos partidos da esquerda e sindicatos de trabalhadores que têm se manifestado a favor de uma polícia desmilitarizada.
Realizada a reforma, na medida em que o número de policiais civis uniformizados aumente, substituirão os policiais militares nas áreas de policiamento ostensivo antes por estes cobertas. As polícias militares passariam a atuar em funções complementares ou auxiliares, à semelhança dos demais países que possuem gendarmarias.
Não será uma empresa fácil, mas caminhará no sentido da marcha civilizatória do nosso país.
Enfatizando, as ideias expostas não manifestam opinião contra os militares ou contra as instituições militares, apenas reafirmam que o serviço policial compete aos civis e às organizações policiais civis.