Após algumas horas de permanência do capitão Espírito
Santo na Chefia da Polícia, o Governo Republicano
resolveu nomear para o cargo um bacharel em Direito, o
dr. João Batista de Sampaio Ferraz, em 16 de novembro de
1889. A par da excelente escolha seguiu uma tradição respeitada
pela monarquia de entregar a direção da Polícia a
um homem das leis.
Sampaio Ferraz, além de jurista, era um homem da
República. Desde a juventude lutou pelo estabelecimento do
novo regime pela propaganda, por meio da devotada pregação
dos princípios norteadores da liberdade e da democracia.
Nasceu na cidade de Campinas (SP) no dia 16 de fevereiro
de 1857. Formou-se na Faculdade de Direito de São
Paulo em novembro de 1878. Mudou-se para o Rio de Janeiro
e como muitos jovens bacharéis da época, iniciou a carreira
jurídica exercendo a função de promotor público de 1881 a
1888. Em 1888, a serviço do ideal republicano fundou com
João das Chagas Lobato o jornal “O Correio do Povo”, onde
teve a oportunidade de defender suas ideias.
Embora tenha permanecido no exercício do cargo por
pouco tempo, porque em 1890 foi eleito como o Deputado
mais votado pelo Distrito Federal à Assembleia Nacional
Constituinte, administrou com grande empenho a questão da
segurança pública da cidade assolada pela criminalidade de rua.
Como seus primeiros colaboradores, nomeou os drs. João
das Chagas Lobato e Thomaz Delphino dos Santos, para primeiro
e segundo Delegados Auxiliares e substituiu os delegados
dos distritos da Candelária, Santa Rita, Inhaúma, Engenho
Velho, Irajá e Santo Antônio, designando os drs. José Silvério
Barbosa, Orozimbo Correia Netto, Pedro Antônio Domingues,
Alfredo Augusto Vidal, José Manoel Novaes Machado e
Eduardo Augusto de Souza Santos, respectivamente.
Assumiu o cargo quando a atividade da capoeiragem estava
bastante ativa na cidade, embora houvesse um divisor
bem nítido entre a capoeira como manifestação cultural, que
se expressava pela luta, dança e música, caracterizada por
movimentos ágeis, com a utilização dos pés, mãos e acrobacias,
desenvolvida pelos escravos africanos trazidos para o
Brasil como meio de defesa pessoal, resistência à opressão do
sistema escravagista, preservação da identidade e tradições e
a capoeiragem praticada nas ruas do Rio no curso do século
XIX que era a utilização dos conhecimentos da capoeira em
apoio às atividades dos criminosos para o roubo, a agressão,
homicídio, arruaça, depredações e demais violências dirigidas
à população em geral, surpreendida em meio à mazorca
por ela criada.
Em artigo publicado no “Correio da Manhã”, de
26/03/1967, Agostinho Seixas assim a descreve: “...puxadores
de carrinhos e os chamados pretos de ganho (biscateiros),
pescadores e peixeiros transformavam-se definitivamente em
capoeiras profissionais, empreiteiros de crimes e vinganças,
guarda-costas de pessoas de recursos ou não. Eram temidos e
respeitados, pela valentia e agilidade de seus golpes, quase sempre
fatais para os adversários.
Não rejeitavam “parada” e até guarnições de soldados
eram enfrentadas a “cabeçada”, “rasteira”, “rabo-de-arraia”. No
final do século passado (XIX) o problema que mais preocupava
as autoridades eram as maltas, existindo entre tantas a da
Lança, na freguesia de São Jorge, a de Santo Inácio, no Morro
do Castelo, os Luzianos, da Praia de Santa Luzia, Franciscanos,
de São Francisco de Paula e a do Bom Jesus do Calvário, denominada
dos Ossos.”
A capoeira como luta e como esporte, aos poucos, passou
a ser adotada pelo branco, pois, a eficiência dos seus golpes
dava a qualquer homem bem treinado superioridade nas contendas
de rua, nas disputas em que se envolvesse, com eficaz
defesa diante das agressões. Atraiu o interesse de soldados e
milicianos, da rapaziada da Corte, filhos de respeitadas famílias
e dos malfeitores.
Jornais, como “O Paiz”, “Jornal do Comércio”, “Diário de
Notícias” e outros, nos anos da monarquia já vinham noticiando
a atividade criminosa da capoeiragem, ora para roubar, ora
para ferir ou matar, ora para dissolver atividades ou festividades
públicas. Clamavam providências das autoridades contra
esses criminosos, que proliferavam na cidade e cuja repressão
vinha sendo feita com a maior dificuldade pela polícia.
O jornal “O Paiz”, de Quintino Bocaiúva, considerado
“O Príncipe do Jornalismo”, quase todos os dias, trazia notícias
como essas:
“Ontem, a tarde foi preso à Rua Santo Cristo o capoeira e desordeiro
conhecido como Manduca Mulatinho sendo causa da prisão
o fato de Manduca ter espancado uma mulher na Praça do
Santo Cristo. Manduca é o mesmo indivíduo que no mês findo
promoveu desordens naquela rua, ferindo gravemente uma praça
de cavalaria...” “O Paiz”, 27/12/1885, pág. 2
“O dia de ontem, como tantos outros, foi consagrado às correrias
dos capoeiras. À tarde na travessa de São Francisco de Paula e
à noite no Largo da Carioca, os dois bandos inimigos vieram as
mãos e trocaram tiros de revólver, navalhadas e pedradas.” “O
Paiz” 09/03/1885, pág. 2
“Malvado capoeira, acobertado pela máscara que trazia a cara,
deu anteontem um profundo golpe de navalha em Manoel
Francisco dos Santos que se achava no botequim nº 130 da Rua
da Misericórdia. Santos foi recolhido à Misericórdia, (Santa
Casa). “O Paiz”, 22/02/1887 – pág. 1
“Anteontem voltaram a dar batalha na Rua de Alcântara e desta
vez aos cacetes, navalhas e facas juntaram armas de fogo. Os
moradores estavam espavoridos com a luta e com os tiros de
revólver, fecharam as casas e apetrecharam-se para defender a
vida e bens.” “O Paiz”, 14/01/1886 – pág. 1
O “Jornal do Comércio”, de 13/08/1886, edição 0224,
publicou um editorial com o título “Segurança Individual” e
abordou o grande inconveniente que constituía para a cidade
do Rio de Janeiro os “malfeitores conhecidos pela denominação
de capoeiras”:
“Há numerosos anos, nem sabemos desde quando, é flagelada
a cidade do Rio de Janeiro por essa classe de malfeitores conhecidos
pela denominação de capoeiras. A energia com que, em
algumas quadras, se tem procurado reprimir lhes as tropelias e
os crimes, apenas tem logrado atenuar o flagelo sem extirpá-lo.
O efeito momentâneo não tem embargado que, dentro de pouco
tempo, recrudesça o mal. Basta que a autoridade, por falta de
meios de ação ou por outra qualquer causa, se mostre menos
vigilante, para que tais malfeitores redobrem a audácia de que
toda a cidade pode dar testemunho doloroso.
Não são malfeitores comuns os capoeiras. Em todas as grandes
cidades pululam vagabundos, desordeiros, homens de maus
instintos, criminosos de diversos graus. Os capoeiras do Rio de
Janeiro, porém, constituem particular categoria de malfeitores e
é triste saber que nessa hedionda classe não é raro achar homens
que são para ela atraídos por outras causas, que não, a falta de
aptidão de trabalho e até de proteção.
Os anais da polícia registram homicídios perpetrados por capoeiras
sem nenhum outro móvel além da ostentação de inaudita
perversidade. Ferem e matam pessoas a quem não conhecem,
que vão pacificamente o seu caminho, assim praticando o crime
pelo crime, dir-se-ia pela vaidade de primar entre os seus pela
agilidade no maneio da arma homicida ou pelo requinte dos
instintos perversos.”
Sampaio Ferraz, com zelo e cumprindo os deveres determinados
pelo cargo, reprimiu essa onda de criminalidade
cujos males tanto afetavam a população do Rio. Sob o
seu comando, a polícia aumentou a vigilância, o número de
prisões de criminosos tornados famosos por suas façanhas e
providenciou para o efetivo cumprimento das penas em estabelecimentos
carcerários.
O trabalho feito com seriedade passou a ser respeitado,
acatado, tornando-se eficaz. A repressão atingia a todos os desordeiros
independentemente da sua posição social e do político
a quem serviam. Dentre estes, não fugiu à ação policial o
capoeirista José Elísio dos Reis, filho do Conde de Matosinhos.
Mandado cumprir pena na Ilha de Fernando de Noronha de
nada valeram as pressões de políticos influentes no governo republicano
de então.
Esse clamor popular contra as maltas da capoeiragem
acabou repercutindo na esfera da lei penal, tanto assim que o
Código de 11 de outubro de 1890, editado através do Decreto
nº 847 do governo provisório, passou a ocupar-se dos delitos
praticados por vadios e capoeiras nos artigos 399 e seguintes:
Capítulo XIII – Dos vadios e capoeiras
Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade
e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem;
andar em correrias, com armas ou instrumentos
capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumultos
ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo
temor de algum mal.
Parágrafo único. É considerado circunstância agravante pertencer
o capoeira a alguma banda ou malta.
Aos chefes, ou cabeças, se imporá a pena em dobro.
Art. 404. Si nesses exercícios de capoeiragem perpetrar homicídio,
praticar alguma lesão corporal, ultrajar o pudor público
e particular, perturbar a ordem, a tranquilidade ou segurança
pública, ou for encontrado com armas, incorrerá cumulativamente
nas penas cominadas para tais crimes.
Falsas teses surgiram muitos anos após os fatos narrados
para apresentar o ilustre brasileiro como injusto repressor
de uma genuína manifestação da cultura popular, mormente,
quando posterior à ação policial houve um acentuado decréscimo
da preferência pela capoeira como atividade desportiva
e meio de defesa pessoal.
Para J. Paula Ribeiro, em “Vida Policial” de janeiro de
1926, “o Dr. Sampaio Ferraz aproveitara a situação ditatorial
do Governo Provisório para exercer a repressão contra
os capoeiras, mas, sobrevindo o regime constitucional, os capoeiras
voltaram à Capital, onde não mais se arregimentaram.
Conservaram, porém, o jogo ou a escola para ocasiões oportunas,
e, posteriormente, não raro, a polícia tinha que enfrentar
um ou mais espécimes desregrados do grande corpo “capoeiral”.
A capoeira, ainda no primeiro quarto de século, foi perdendo
espaço como luta corporal e defesa pessoal diante da
superioridade técnica, princípios de ética desportiva e eficiência
efetiva da arte marcial oriental introduzida no Brasil
por Mitsuyo Maeda e disseminada por Carlos Gracie, hoje
conhecida por jiu-jitsu brasileiro.
A “Gazeta de Notícias” do dia 4 de maio de 1890 noticiou
com destaque a inauguração festiva da 14ª Estação de
Polícia no novo endereço do Campo de São Cristóvão n.° 118.
Melhoramentos, introduzidos nas repartições policiais, não
eram comuns no governo monárquico.
Na solenidade, estava presente o coronel Solon Ribeiro,
de destacada atuação na Proclamação da República, tornando-
se conhecido como o enviado do governo provisório encarregado
de comunicar ao Imperador a determinação para
deixar o país em 24 horas, no dia 16 de novembro de 1889.
“Ao desfraldar-se a bandeira, o professor Hemetério José dos
Santos, do Colégio Militar, pronunciou um discurso homenageando
o Chefe de Polícia Sampaio Ferraz e seus auxiliares em
São Cristóvão.
Pelos presentes foram feitos brindes, do professor Hemetério ao
brigadeiro Benjamin Constant, do delegado Pernambuco ao coronel
Sólon, do coronel Galvão pelo congraçamento do Exército
com a Polícia, do delegado Castro Junior ao Generalíssimo
Manoel Deodoro da Fonseca.”
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