domingo, 27 de fevereiro de 2022

POLÍCIA DE CICLO COMPLETO

Nos países de moderna civilização e adiantada cultura a polícia é uma organização civil, integrada por funcionários civis, regidos por regulamentos próprios ao serviço público civil, que realiza o ciclo completo de polícia, isto é, o desempenho conjunto da investigação criminal ou polícia judiciária e a execução do policiamento uniformizado destinado à prevenção criminal pela presença ostensiva dos policiais nas ruas.

Assim ocorre no Reino Unido, Alemanha, Áustria, Holanda, Bélgica, Suíça, Suécia, Dinamarca, Finlândia, Grécia, Rússia, nos países da Europa Oriental e nos Estados Unidos. Exceção, apenas, dos países da Europa latina onde existem gendarmarias, corporações militares empregadas no policiamento, com ciclo completo de polícia. O predomínio dessas corporações militares estabeleceu-se na primeira metade do século XX no contexto das diversas ditaduras fascistas instaladas. Após questionamentos surgidos no âmbito da União Europeia, corporações com estatuto civil como a Polícia Nacional da França, a Polícia de Estado, na Itália e o Corpo Nacional de Polícia da Espanha, passaram a assumir o protagonismo do serviço policial nos grandes centros urbanos e áreas metropolitanas dos seus países.

Na América Latina, o ressurgimento da democracia chilena expresso na sua Convenção Constitucional, resultou na deliberação para a extinção dos “Carabineros de Chile”, gendarmaria que desde a ditadura de Pinochet vinha se mostrando inadequada para a prestação do serviço policial ao cidadão.

Com o novo estatuto do funcionalismo civil e novo modelo de formação profissional esses policiais terão a oportunidade de prestar condizentes serviços à sociedade civil e à democracia.

Não poderia ser de outro modo em países onde a consciência jurídica da população resulta de uma cultura secular. A POLÍCIA é um serviço público próprio da administração civil que serve a sociedade civil, para garantir a segurança das pessoas e do seu patrimônio em decorrência dos direitos de cidadania assegurados pelas cartas constitucionais. Torna-se impróprio o emprego de corporações militares para exercerem essa missão genuinamente civil de polícia: nessas forças predomina o espírito de casta, distanciando os seus integrantes do cidadão comum; estão sujeitas à legislação militar, inclusive à justiça militar para julgamento de crimes praticados contra civis durante o serviço (no Brasil, com algumas poucas exceções); a sua formação belígera, peculiar das Forças Armadas, acaba influenciando negativamente no trato com a sociedade; inexiste o livre acesso do cidadão aos quarteis e aquartelamentos, diferentemente das demais repartições públicas; torna-se pesada e dispendiosa a estrutura das suas organizações, com os seus desdobramentos hierárquicos que exigem muitas pessoas para a manutenção ou prestação de determinados serviços.

No Brasil, juristas no início do século XX idealizaram o modelo de polícia para a república e para a democracia: Antônio Augusto Cardoso de Castro, Alfredo Pinto, Leoni Ramos. Geminiano da Franca, os três primeiros, futuros ministros do Supremo Tribunal Federal, se inspiraram nas instituições francesas, até hoje representadas pela respeitada Polícia Nacional, para reorganizar a Polícia Civil do Distrito Federal, modelo para as demais coirmãs do país. O comissariado, representado aqui pela delegacia de polícia, o "gardien de la paix", aqui o guarda civil, as especializações da perícia criminal com a criação dos Gabinetes, Médico-Legal, Gabinete de Identificação e Gabinete de Perícias Criminais, a formação profissional através da Escola de Polícia, o Museu, elo de ligação com a comunidade para difusão de experiências, as investigações especializadas a cargo das delegacias auxiliares e a magnífica sede construída no legítimo estilo eclético francês pelo mais afamado arquiteto brasileiro, Heitor de Mello. Essa estrutura fazia da polícia civil uma polícia de ciclo completo, onde delegacias a par de desenvolverem o trabalho de polícia judiciária, orientavam o policiamento uniformizado da Guarda Civil, nas suas respectivas circunscrições.

Durante sessenta anos tivemos uma polícia que serviu de modelo para países estrangeiros, inclusive para a polícia portuguesa e de outros países da América. Em 1964, o golpe de estado implantou um governo militar que perduraria por 25 anos.

Nesse novo contexto indagaram-se os novos senhores do poder sobre os destinos das polícias civis, organizações estaduais armadas mas desenquadradas dos ditames da caserna e, portanto, para eles "pouco confiáveis". Além disso, pouco tempo antes, em decorrência da criação do Estado da Guanabara, houve uma maciça opção de policiais do antigo Distrito Federal pela subordinação ao governo federal, ainda sob a presidência do presidente deposto João Goulart.

Assim, o  governo, pelas afinidades existentes, decidiu confiar às milícias estaduais a execução do policiamento ostensivo uniformizado. Refizeram a sua legislação, deram-lhes a exclusividade no desempenho dessa atribuição e colocaram um oficial do Exército no comando de cada uma delas.

A Constituinte de 1988 seria a oportunidade para corrigir erros e distorções, mas no tocante às ideias e propostas para a segurança pública mostraram-se despreparados tanto os constituintes quanto os representantes das polícias civis, que deveriam apresentar um novo sistema de defesa social condizente com o mundo contemporâneo e democrático. Os profissionais de polícia não se mobilizaram para a luta pelo ciclo completo, que salvaria o Brasil da ineficiência policial.

Nosso sistema de segurança pública, decorrente do disposto no artigo 144 e seus parágrafos da Constituição Federal é realmente único e o mais ineficaz do planeta. Nas polícias de ciclo completo a repartição policial ou delegacia de uma circunscrição desenvolve as investigações criminais e realiza o policiamento uniformizado, ambos direcionados à prevenção e repressão da incidência criminal. As ações policiais se apoiam e se completam na busca dos melhores resultados, porque essa unidade é a única responsável pela segurança pública na sua área.

No nosso atual sistema não existem responsáveis individualizados pela segurança de uma determinada área porque os limites territoriais estabelecidos para os batalhões da polícia militar não são os mesmos determinados como circunscrições policiais das delegacias.

Nos estados brasileiros existe uma desproporção entre os efetivos das suas duas polícias. A investigação policial requer um número de policiais proporcional a incidência criminal do estado, porque cada investigação é um trabalho individual e, às vezes, moroso. Pouco se cuidou de assegurar a admissão do pessoal necessário para atender essa atribuição específica. As polícias civis contam com um número insuficiente de servidores para reprimir através do exercício da polícia judiciária a criminalidade crescente, decorrente do aumento da população, dos problemas sociais e das carências policiais.

Já as polícias militares, pela sua ostensividade, contam com o apoio dos governadores para engrossarem as suas fileiras. Criaram doutrina, formularam estratégia e estão se transformando em enormes corporações, cujo efetivo já disponibilizam para atividades típicas de polícia judiciária através de investigações conduzidas por milicianos.

Os efetivos tornam-se fatores determinantes para a expansão das competências e serviços. Os dirigentes das polícias civis ao se descuidarem do requerido aumento do número de funcionários das suas corporações determinam o futuro das mesmas. Em alguns estados, certamente pela maior disponibilidade de pessoal, as polícias militares estão sendo autorizadas a lavrar o termo circunstanciado da Lei n° 9.099/95, forma simplificada de processar para encaminhamento a juízo a maioria das infrações penais. Portanto, chegaram ao ciclo completo de polícia, faltando-lhes a posse das delegacias policiais, onde, com maior conforto para o cidadão viabilizarão esse atendimento policial.

E a polícia civil, como ficará se não acompanhar as exigências da segurança pública? Terá o destino de uma polícia judiciária tipo portuguesa, ainda com maiores limitações na execução do seu trabalho?  Nesse contexto, realça a insensibilidade das diretorias das associações de delegados, aferroadas apenas à manutenção do inquérito policial sob a presidência do delegado, mas esquecidas do alcance social e institucional da implantação do ciclo completo na polícia civil.

Ou seja, os comportamentos atuais conduzem ao estabelecimento em cada estado de uma polícia militar de ciclo completo e de uma agência civil de investigações especializadas, de restrita atuação e operacionalmente dependente da primeira.

Penso que para superar as falhas e contradições originadas no atual sistema de segurança pública do país, inclusive a existência de uma organização militar empregada no policiamento civil e as questões de desentrosamento e ineficiência policiais, torna-se necessário o empenho de todos os segmentos representativos das polícias civis e demais cidadãos para mostrar à sociedade da conveniência de efetivar-se uma reforma constitucional atribuindo o ciclo completo às polícias civis.

Nessa campanha já contam com o apoio de diversos partidos da esquerda e sindicatos de trabalhadores que têm se manifestado a favor de uma polícia desmilitarizada.

Realizada a reforma, na medida em que o número de policiais civis uniformizados aumente, substituirão os policiais militares nas áreas de policiamento ostensivo antes por estes cobertas. As polícias militares passariam a atuar em funções complementares ou auxiliares, à semelhança dos demais países que possuem gendarmarias.

Não será uma empresa fácil, mas caminhará no sentido da marcha civilizatória do nosso país.

Enfatizando, as ideias expostas não manifestam opinião contra os militares ou contra as instituições militares, apenas reafirmam que o serviço policial compete aos civis e às organizações policiais civis.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

HONRAS PÓSTUMAS PRESTADAS AOS POLICIAIS HERÓIS

 




Foram sepultados no final do mês de janeiro de 2022, após um ofício fúnebre na Catedral de São Patrício, em Nova Iorque, os policiais Jason Rivera e o seu parceiro Wilbert Mora, mortos em serviço, quando no Harlem atendiam um chamado de “violência doméstica”.


Rivera, com 22 anos, promovido a Detetive “post mortem”, foi um dos policiais mais jovens a morrer no cumprimento do dever. O seu companheiro, o Detetive Mora, contava com 27 anos.


Rivera, com o entusiasmo da juventude, se voluntariava para qualquer trabalho e assumia as tarefas mais difíceis para ele dadas, apenas pela chance de aprender e servir.


Milhares de pessoas compareceram aos serviços funerários dos dois policiais em Manhattan.


Vários vídeos foram feitos durante as homenagens prestadas aos dois bravos e podem ser assistidos no You Tube.




EXPLICANDO A POLÍCIA CIVIL

 A Polícia destina-se à manutenção da ordem pública, à defesa da vida, segurança e patrimônio dos cidadãos.


A Polícia Civil brasileira é muito antiga e tem a sua origem nos alcaides de 1619, encarregados de investigar os delitos e prender os seus autores.


Em 1808, consolidaram-se na Intendência Geral de Polícia e da Corte do Brasil as diversas funções policiais que operavam na Colônia.


Com a Proclamação da República, a Polícia da Corte recebeu a denominação de Polícia Civil do Distrito Federal e nos demais estados brasileiros surgiram igualmente as suas Polícias Civis.


Os juristas que organizaram a Polícia Civil desejaram acentuar com a nova designação a natureza civil das suas funções, o ramo civil da Administração Pública a qual ela pertence e a condição estatutária dos seus integrantes.


A Polícia e a Segurança Pública são atividades civis, como o são a Saúde, a Educação e quase todas as outras.


Na maior parte dos países do nosso planeta as polícias possuem estatuto civil, são integradas por servidores civis e estão sujeitas à autoridade de um dignitário civil, o Ministro do Interior ou o Ministro da Justiça.


Da mesma forma, as polícias são de ciclo completo, isto é, exercem a polícia judiciária ou de investigação e o policiamento uniformizado dos logradouros públicos.


Essa estrutura possibilita a centralização da atividade policial nas delegacias dos bairros (ou circunscrições), estreita a colaboração entre os segmentos de investigação e de policiamento, reúne os esforços direcionados a atender os problemas locais, define a responsabilidade da delegacia em face das suas metas, oferece à autoridade superior nítida avaliação do desempenho e aproxima a repartição policial dos cidadãos, onde têm livre acesso a qualquer momento. Resulta, portanto, em maior eficiência.


Quatro países latinos, além das suas polícias de estatuto civil, possuem gerdarmarias (no Brasil chamadas de polícia militar) dividindo as áreas policiais com as polícias civis. Após a criação da União Europeia, as polícias de estatuto civil passaram a se responsabilizar pelas regiões metropolitanas, notadamente a Polícia Nacional da França e o Corpo Nacional de Polícia, da Espanha.


As polícias civis brasileiras perderam os seus policiais uniformizados a partir de 1969 por disposição do ditador general Costa e Silva e assim permaneceram por inação de políticos, cujas novas gerações tentam reparar os seus prejudiciais efeitos Em reforço, existe o pleito de diversas correntes da população para o restabelecimento de uma polícia civil de ciclo completo.

 



                                                                  

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

ÚLTIMOS MOMENTOS DA POLÍCIA DA CORTE


Às quinze horas do dia 15 de novembro de 1889, já proclamada

a República no Brasil, chegou ao prédio da

Chefatura de Polícia do Império na Rua dos Inválidos nº 78 a

80, o capitão do Exército Antônio Vicente do Espírito Santo

e recebido pelo conselheiro José Basson de Miranda Osório,

Chefe de Polícia da Corte, declarou-lhe:

“Em nome e de parte do Governo Provisório venho render a

Vossa Senhoria no lugar de Chefe de Polícia e declarar-lhe que

ele, Governo, é de paz e fraternidade, e conta com o concurso

de todos os bons cidadãos para a manutenção da ordem e

tranquilidade pública.”

Em resposta, declarou o Conselheiro: “os que me investiram

neste cargo já me mandaram dizer que não tinham

mais ordens a dar-me. Esperava aqui que me viessem render.

Portanto, retiro-me.”

         Proclamação da República - 15 de Novembro de 1889

Em seguida, despedindo-se dos servidores ali presentes

como delegados e médicos, o comandante da Guarda Cívica,

capitão Lírio (sucessora da Guarda Urbana), dirigiu-se para a

saída do prédio, acompanhado de Espírito Santo, Delegados

Auxiliares e outros servidores.

Após a saída do ex-Chefe de Polícia, os Delegados

Auxiliares pediram exoneração sendo parcialmente substituídos

por militares da confiança do novo Chefe. Foram nomeados,

em caráter interino, o major Cândido José de Siqueira

Campelo para 1º Delegado Auxiliar e o capitão Austreclino

Vilarim para a 3ª Delegacia Auxiliar.

Mais tarde chegou a notícia de invasão na Casa de

Detenção e coube a Espírito Santo as primeiras providências,

para lá enviando vinte praças comandadas por um alferes.

A ronda da cidade passou a ser feita por unidades do

Exército, sendo expedidas ordens para que “fosse executado

esse serviço com a maior calma e correção”. Praças do 7º

Batalhão de Infantaria foram mandadas para reforçar os efetivos

dos postos policiais (estações de polícia).1

No dia seguinte, 16 de novembro, assumiu o cargo de

primeiro Chefe de Polícia do governo republicano o bacharel

João Batista de Sampaio Ferraz, um prócer da propaganda

republicana.

Quanto ao último Chefe de Polícia da Corte, conselheiro

Miranda Osório, nasceu na cidade de Parnaíba, na então província

do Piauí, em 17 de novembro de 1836. Bacharelou-se

em Direito pela Faculdade de Direito de São Paulo, ingressou

na magistratura, a qual abandonou para dedicar-se à política.

Foi Deputado Provincial, Deputado Geral e Presidente

da Província da Paraíba. Dedicado ao governo monárquico,

nele reconhecia-se competência administrativa e vasta cultura,

motivos que contribuíram para a sua escolha para o espinhoso

cargo de Chefe de Polícia por ocasião da ascensão do

Visconde de Ouro Preto (Afonso Celso de Assis Figueiredo) à

Presidência do último gabinete ministerial do Império.

Em carta enviada a Ouro Preto, um mês depois da

Proclamação, reproduziu com riqueza de detalhes os acontecimentos

que precederam aquele dia e seu desempenho

no cargo que lhe foi confiado.2 Nesse relatório, demonstrou

o cuidado de colocar o governo a par do movimento militar

em andamento, desdobrando-se para manter entendimentos

com os chefes militares, o Ajudante Geral do Exército e Chefe

do Estado-Maior, Marechal Floriano Peixoto, o Ministro da

Guerra, Conselheiro Cândido de Oliveira e da Marinha,

Barão de Ladário. Dito trabalho, que se estendeu ao acompanhamento

da agitação republicana com alguma repercussão

nas ruas e movimentação no Clube Militar, contou com a colaboração

do 1º Delegado Auxiliar, dr. Bernardino Ferreira e

do 3º Delegado Auxiliar, dr. Brasil Silvado.

Apesar das tentativas do Marechal Floriano de desmentir

rumores e tentar acalmar o governo, tornou-se nítida a preparação

de um golpe militar diante dos levantamentos feitos

pela polícia e informados ao presidente do Conselho.

Basson mencionou as causas remotas que acabaram por

deflagrar o golpe como o descontentamento da classe militar,

que segundo Benjamin Constant vinha sendo vítima de injustiças

e injúrias da monarquia. Lembrou a célebre questão

militar, os fatos que envolveram a morte do jornalista Apulcro

de Castro, a insubordinação na Escola Militar da Praia

Vermelha. (A carta evitou comentar a influência da intensa

campanha republicana no movimento militar, de longa data

promovida por ilustres brasileiros, fortemente inspirada no

credo positivista em voga, base doutrinária do novo regime

e da Revolução.)

              Marechal Floriano Peixoto

Basson, ainda fiel à monarquia, concluiu a sua carta relatório

parecendo lamentar o alvorecer do novo regime, apontando

a inércia do governo monárquico diante da necessidade de se

defender, embora devidamente avisado pela Polícia da Corte:

1) que o governo, diante das informações chegadas ao

seu conhecimento, não tomou as providências enérgicas

e oportunas que devia, confiando nas negativas e

protestos de fidelidade do Chefe do Estado-Maior ou

Ajudante General do Exército;

2) que o Chefe de Polícia foi a única autoridade vigilante,

embora não ouvida pelo governo e com a autoridade

sabotada por elementos subordinados;

3) que a vitória do movimento se deveu à inação por parte

do Ajudante General, Marechal Floriano Peixoto.

Por ressentimento político, o missivista foi injusto quanto

às referências feitas ao Marechal Floriano, que não ficou

inerte diante dos acontecimentos. Estava afinado com o golpe

militar republicano. Era um verdadeiro patriota, honesto nos

seus propósitos e impecável na sua conduta. Dentre os artífices

da Proclamação, talvez, tenha sido o mais determinado e

eficiente para alcançar o vitorioso desfecho.

O PRIMEIRO CHEFE DE POLÍCIA DA REPÚBLICA


Após algumas horas de permanência do capitão Espírito

Santo na Chefia da Polícia, o Governo Republicano

resolveu nomear para o cargo um bacharel em Direito, o

dr. João Batista de Sampaio Ferraz, em 16 de novembro de

1889. A par da excelente escolha seguiu uma tradição respeitada

pela monarquia de entregar a direção da Polícia a

um homem das leis.

Sampaio Ferraz, além de jurista, era um homem da

República. Desde a juventude lutou pelo estabelecimento do

novo regime pela propaganda, por meio da devotada pregação

dos princípios norteadores da liberdade e da democracia.

Nasceu na cidade de Campinas (SP) no dia 16 de fevereiro

de 1857. Formou-se na Faculdade de Direito de São

Paulo em novembro de 1878. Mudou-se para o Rio de Janeiro

e como muitos jovens bacharéis da época, iniciou a carreira

jurídica exercendo a função de promotor público de 1881 a

1888. Em 1888, a serviço do ideal republicano fundou com

João das Chagas Lobato o jornal “O Correio do Povo”, onde

teve a oportunidade de defender suas ideias.



Embora tenha permanecido no exercício do cargo por

pouco tempo, porque em 1890 foi eleito como o Deputado

mais votado pelo Distrito Federal à Assembleia Nacional

Constituinte, administrou com grande empenho a questão da

segurança pública da cidade assolada pela criminalidade de rua.

Como seus primeiros colaboradores, nomeou os drs. João

das Chagas Lobato e Thomaz Delphino dos Santos, para primeiro

e segundo Delegados Auxiliares e substituiu os delegados

dos distritos da Candelária, Santa Rita, Inhaúma, Engenho

Velho, Irajá e Santo Antônio, designando os drs. José Silvério

Barbosa, Orozimbo Correia Netto, Pedro Antônio Domingues,

Alfredo Augusto Vidal, José Manoel Novaes Machado e

Eduardo Augusto de Souza Santos, respectivamente.

Assumiu o cargo quando a atividade da capoeiragem estava

bastante ativa na cidade, embora houvesse um divisor

bem nítido entre a capoeira como manifestação cultural, que

se expressava pela luta, dança e música, caracterizada por

movimentos ágeis, com a utilização dos pés, mãos e acrobacias,

desenvolvida pelos escravos africanos trazidos para o

Brasil como meio de defesa pessoal, resistência à opressão do

sistema escravagista, preservação da identidade e tradições e

a capoeiragem praticada nas ruas do Rio no curso do século

XIX que era a utilização dos conhecimentos da capoeira em

apoio às atividades dos criminosos para o roubo, a agressão,

homicídio, arruaça, depredações e demais violências dirigidas

à população em geral, surpreendida em meio à mazorca

por ela criada.

Em artigo publicado no “Correio da Manhã”, de

26/03/1967, Agostinho Seixas assim a descreve: “...puxadores

de carrinhos e os chamados pretos de ganho (biscateiros),

pescadores e peixeiros transformavam-se definitivamente em

capoeiras profissionais, empreiteiros de crimes e vinganças,

guarda-costas de pessoas de recursos ou não. Eram temidos e

respeitados, pela valentia e agilidade de seus golpes, quase sempre

fatais para os adversários.

Não rejeitavam “parada” e até guarnições de soldados

eram enfrentadas a “cabeçada”, “rasteira”, “rabo-de-arraia”. No

final do século passado (XIX) o problema que mais preocupava

as autoridades eram as maltas, existindo entre tantas a da

Lança, na freguesia de São Jorge, a de Santo Inácio, no Morro

do Castelo, os Luzianos, da Praia de Santa Luzia, Franciscanos,

de São Francisco de Paula e a do Bom Jesus do Calvário, denominada

dos Ossos.”

A capoeira como luta e como esporte, aos poucos, passou

a ser adotada pelo branco, pois, a eficiência dos seus golpes

dava a qualquer homem bem treinado superioridade nas contendas

de rua, nas disputas em que se envolvesse, com eficaz

defesa diante das agressões. Atraiu o interesse de soldados e

milicianos, da rapaziada da Corte, filhos de respeitadas famílias

e dos malfeitores.

Jornais, como “O Paiz”, “Jornal do Comércio”, “Diário de

Notícias” e outros, nos anos da monarquia já vinham noticiando

a atividade criminosa da capoeiragem, ora para roubar, ora

para ferir ou matar, ora para dissolver atividades ou festividades

públicas. Clamavam providências das autoridades contra

esses criminosos, que proliferavam na cidade e cuja repressão

vinha sendo feita com a maior dificuldade pela polícia.

O jornal “O Paiz”, de Quintino Bocaiúva, considerado

“O Príncipe do Jornalismo”, quase todos os dias, trazia notícias

como essas:

“Ontem, a tarde foi preso à Rua Santo Cristo o capoeira e desordeiro

conhecido como Manduca Mulatinho sendo causa da prisão

o fato de Manduca ter espancado uma mulher na Praça do

Santo Cristo. Manduca é o mesmo indivíduo que no mês findo

promoveu desordens naquela rua, ferindo gravemente uma praça

de cavalaria...” “O Paiz”, 27/12/1885, pág. 2

“O dia de ontem, como tantos outros, foi consagrado às correrias

dos capoeiras. À tarde na travessa de São Francisco de Paula e

à noite no Largo da Carioca, os dois bandos inimigos vieram as

mãos e trocaram tiros de revólver, navalhadas e pedradas.” “O

Paiz” 09/03/1885, pág. 2

“Malvado capoeira, acobertado pela máscara que trazia a cara,

deu anteontem um profundo golpe de navalha em Manoel

Francisco dos Santos que se achava no botequim nº 130 da Rua

da Misericórdia. Santos foi recolhido à Misericórdia, (Santa

Casa). “O Paiz”, 22/02/1887 – pág. 1

“Anteontem voltaram a dar batalha na Rua de Alcântara e desta

vez aos cacetes, navalhas e facas juntaram armas de fogo. Os

moradores estavam espavoridos com a luta e com os tiros de

revólver, fecharam as casas e apetrecharam-se para defender a

vida e bens.” “O Paiz”, 14/01/1886 – pág. 1

O “Jornal do Comércio”, de 13/08/1886, edição 0224,

publicou um editorial com o título “Segurança Individual” e

abordou o grande inconveniente que constituía para a cidade

do Rio de Janeiro os “malfeitores conhecidos pela denominação

de capoeiras”:

“Há numerosos anos, nem sabemos desde quando, é flagelada

a cidade do Rio de Janeiro por essa classe de malfeitores conhecidos

pela denominação de capoeiras. A energia com que, em

algumas quadras, se tem procurado reprimir lhes as tropelias e

os crimes, apenas tem logrado atenuar o flagelo sem extirpá-lo.

O efeito momentâneo não tem embargado que, dentro de pouco

tempo, recrudesça o mal. Basta que a autoridade, por falta de

meios de ação ou por outra qualquer causa, se mostre menos

vigilante, para que tais malfeitores redobrem a audácia de que

toda a cidade pode dar testemunho doloroso.

Não são malfeitores comuns os capoeiras. Em todas as grandes

cidades pululam vagabundos, desordeiros, homens de maus

instintos, criminosos de diversos graus. Os capoeiras do Rio de

Janeiro, porém, constituem particular categoria de malfeitores e

é triste saber que nessa hedionda classe não é raro achar homens

que são para ela atraídos por outras causas, que não, a falta de

aptidão de trabalho e até de proteção.

Os anais da polícia registram homicídios perpetrados por capoeiras

sem nenhum outro móvel além da ostentação de inaudita

perversidade. Ferem e matam pessoas a quem não conhecem,

que vão pacificamente o seu caminho, assim praticando o crime

pelo crime, dir-se-ia pela vaidade de primar entre os seus pela

agilidade no maneio da arma homicida ou pelo requinte dos

instintos perversos.”

Sampaio Ferraz, com zelo e cumprindo os deveres determinados

pelo cargo, reprimiu essa onda de criminalidade

cujos males tanto afetavam a população do Rio. Sob o

seu comando, a polícia aumentou a vigilância, o número de

prisões de criminosos tornados famosos por suas façanhas e

providenciou para o efetivo cumprimento das penas em estabelecimentos

carcerários.

O trabalho feito com seriedade passou a ser respeitado,

acatado, tornando-se eficaz. A repressão atingia a todos os desordeiros

independentemente da sua posição social e do político

a quem serviam. Dentre estes, não fugiu à ação policial o

capoeirista José Elísio dos Reis, filho do Conde de Matosinhos.

Mandado cumprir pena na Ilha de Fernando de Noronha de

nada valeram as pressões de políticos influentes no governo republicano

de então.

Esse clamor popular contra as maltas da capoeiragem

acabou repercutindo na esfera da lei penal, tanto assim que o

Código de 11 de outubro de 1890, editado através do Decreto

nº 847 do governo provisório, passou a ocupar-se dos delitos

praticados por vadios e capoeiras nos artigos 399 e seguintes:

Capítulo XIII – Dos vadios e capoeiras

Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade

e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem;

andar em correrias, com armas ou instrumentos

capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumultos

ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo

temor de algum mal.

Parágrafo único. É considerado circunstância agravante pertencer

o capoeira a alguma banda ou malta.

Aos chefes, ou cabeças, se imporá a pena em dobro.

Art. 404. Si nesses exercícios de capoeiragem perpetrar homicídio,

praticar alguma lesão corporal, ultrajar o pudor público

e particular, perturbar a ordem, a tranquilidade ou segurança

pública, ou for encontrado com armas, incorrerá cumulativamente

nas penas cominadas para tais crimes.

Falsas teses surgiram muitos anos após os fatos narrados

para apresentar o ilustre brasileiro como injusto repressor

de uma genuína manifestação da cultura popular, mormente,

quando posterior à ação policial houve um acentuado decréscimo

da preferência pela capoeira como atividade desportiva

e meio de defesa pessoal.



Para J. Paula Ribeiro, em “Vida Policial” de janeiro de

1926, “o Dr. Sampaio Ferraz aproveitara a situação ditatorial

do Governo Provisório para exercer a repressão contra

os capoeiras, mas, sobrevindo o regime constitucional, os capoeiras

voltaram à Capital, onde não mais se arregimentaram.

Conservaram, porém, o jogo ou a escola para ocasiões oportunas,

e, posteriormente, não raro, a polícia tinha que enfrentar

um ou mais espécimes desregrados do grande corpo “capoeiral”.

A capoeira, ainda no primeiro quarto de século, foi perdendo

espaço como luta corporal e defesa pessoal diante da

superioridade técnica, princípios de ética desportiva e eficiência

efetiva da arte marcial oriental introduzida no Brasil

por Mitsuyo Maeda e disseminada por Carlos Gracie, hoje

conhecida por jiu-jitsu brasileiro.

A “Gazeta de Notícias” do dia 4 de maio de 1890 noticiou

com destaque a inauguração festiva da 14ª Estação de

Polícia no novo endereço do Campo de São Cristóvão n.° 118.

Melhoramentos, introduzidos nas repartições policiais, não

eram comuns no governo monárquico.

Na solenidade, estava presente o coronel Solon Ribeiro,

de destacada atuação na Proclamação da República, tornando-

se conhecido como o enviado do governo provisório encarregado

de comunicar ao Imperador a determinação para

deixar o país em 24 horas, no dia 16 de novembro de 1889.

“Ao desfraldar-se a bandeira, o professor Hemetério José dos

Santos, do Colégio Militar, pronunciou um discurso homenageando

o Chefe de Polícia Sampaio Ferraz e seus auxiliares em

São Cristóvão.

Pelos presentes foram feitos brindes, do professor Hemetério ao

brigadeiro Benjamin Constant, do delegado Pernambuco ao coronel

Sólon, do coronel Galvão pelo congraçamento do Exército

com a Polícia, do delegado Castro Junior ao Generalíssimo

Manoel Deodoro da Fonseca.”


A ORGANIZAÇÃO POLICIAL DA REPÚBLICA


Dentre as primeiras providências do governo provisório

estavam alguns decretos que disciplinavam os serviços

de polícia do Distrito Federal, herdados da Polícia da Corte,

adequando e aperfeiçoando-os em normas e procedimentos,

que os mantiveram subordinados ao Chefe de Polícia.

O decreto de maio de 1890 torna mais célere a ação da

polícia, estabelecia a competência cumulativa, administrativa

e criminal dos delegados de polícia e permitia a qualquer um

deles da mesma cidade tomar conhecimento dos distúrbios, delitos

ou suspeita de criminalidade ocorridos; proceder às averiguações

legais; prender os criminosos e no impedimento do

delegado do distrito de origem fazer o inquérito policial e ainda

organizar o processo preparatório das infrações e crimes, restringindo,

desse modo, a aplicação das regras da competência

em razão do lugar do delito ou da residência do réu.

No Rio, a cidade era dividida em delegacias circunscricionais,

as quais se subdividiam em tantos distritos quantos

fossem necessários à divisão de tarefas. Era, portanto, competente

para conhecer os fatos delituosos ou administrativos

da sua alçada o delegado da circunscrição policial onde estes

tivessem ocorrido, ou qualquer outro delegado que tomasse

conhecimento deles em primeiro lugar.

Dois meses depois, recebeu nova regulamentação a

Secretaria de Polícia da Capital Federal, órgão de caráter administrativo,

incumbido não só dos assuntos relativos à gestão

interna da polícia como também àqueles relacionados com

as competências de fiscalização externa da sociedade como a

inspeção de veículos e seus condutores.

Foram mantidas as figuras do Secretário de Polícia, do

Oficial Maior e demais cargos já existentes na Polícia da Corte,

todos subordinados ao Chefe de Polícia. Esse cargo de Secretário,

o principal auxiliar da Chefia para as tarefas administrativas

da instituição, criado em 1808, subsistiu até 1944, quando

da alteração da denominação da Polícia Civil do Distrito Federal

para Departamento Federal de Segurança Pública.

No governo do Marechal Floriano Peixoto nova lei de

1892 reorganizou a Polícia do Distrito Federal e introduziu

algumas inovações e, alterou terminologias.

A Polícia do Distrito Federal manteve como Superintendente

Geral o Ministro da Justiça e Interior e era dirigida

pelo Chefe de Polícia, com a atribuição de proceder o

policiamento do município por intermédio de seus Agentes.

O Distrito Federal continuou dividido em circunscrições

policiais atendendo a densidade populacional até o número

de vinte urbanas e oito suburbanas, dirigidas cada uma delas

por um delegado de polícia sob as ordens imediatas do Chefe

de Polícia. As circunscrições foram subdivididas em seções

até o número de 200 urbanas e 64 suburbanas. Subordinados

ao delegado, os inspetores eram responsáveis pelas seções

e pelo policiamento correspondente à sua área seccional.

Assim, o antigo Inspetor de Quarteirão sede lugar ao Inspetor

Seccional. Esse policiamento era reforçado em cada circunscrição

policial por um destacamento de força armada (art.

39) à disposição do seu delegado. A força armada era a Força

Policial, atual Polícia Militar.

Foi criado o Corpo dos Agentes de Segurança com o objetivo

de desenvolver trabalho policial velado segundo as exigências

das investigações.

Foram mantidos os cargos de Delegado Auxiliar e de escrivão

com serventia vitalícia.

Mantido ainda o inquérito policial para a apuração das

infrações penais e da sua autoria e restabelecida a competência

da Polícia para o preparo e julgamento dos processos decorrentes

dos termos de segurança e bem viver.

O Decreto nº 1.034-A, de 1º de setembro de 1892, regulamentando

a execução da lei supramencionada enumera

as atribuições do delegado de polícia no seu artigo 24: fazer

respeitar os direitos individuais e manter a ordem pública; vigiar

e providenciar sobre a prevenção de sinistros, riscos, perigos

e crimes que afetem a segurança pública; empregar a força

armada policial nas diligências necessárias à manutenção da

ordem e sossego da população; indagar dos crimes e descobrir os

criminosos; prender os delinquentes em flagrante delito, lavrando

os respectivos autos; prender preventivamente em crimes

inafiançáveis, com mandado de autoridade judiciária; proceder

à busca e apreensão; instaurar o inquérito policial; processar e

julgar os termos de bem viver e de segurança; prender vadios,

mendigos, ébrios habituais e vagabundos, submetendo-os ao

respectivo processo; interferir em sociedades secretas e ajuntamentos

ilícitos; coordenar o trabalho dos seus auxiliares; velar

sobre as pessoas que venham habitar a Capital Federal; exercer

vigilância sobre a prostituição; fiscalizar as casas de penhor; requisitar

exames de corpo de delito; presidir espetáculos teatrais

e apresentações públicas, quando designado.

No seu artigo primeiro define a natureza jurídica e social

da instituição policial à luz do regime democrático: “A organização

policial do Distrito ou Capital Federal é a constituição

sistemática dos Agentes indispensáveis para a proteção dos direitos

individuais e manutenção da ordem pública.”

O artigo quarto torna o Chefe de Polícia o centro da atividade

policial, seu dirigente maior com autoridade sobre as

demais autoridades e agentes policiais.

Além dos funcionários policiais, o regulamento enumerou

os empregados da Polícia: seis médicos, um administrador

de depósito, um Inspetor de veículos, dois oficiais portuários,

um tesoureiro.

Situando a polícia no ramo da administração civil do

Poder Executivo por meio de vinculação ao Ministério da

Justiça e Interior, acompanhou o modelo das organizações policiais

dos países mais adiantados.

Vimos a concentração da atividade policial na delegacia

de polícia, entrosando as ações do policiamento preventivo

da cidade, desenvolvido nos logradouros públicos e demais

locais sujeitos a fiscalização, supervisionado pelos Inspetores

seccionais e o exercício da polícia judiciária, investigativa e

repressiva, mas também preventiva na medida em que o seu

exitoso trabalho arrefecia as arremetidas criminosas.

Esse sistema de aceitação universal, pelo fato de assegurar

maior eficiência à prestação dos serviços policiais, foi

mantido até o governo militar de 1964, responsável pela segmentação

da estrutura da segurança pública dos estados brasileiros

com as consequências danosas que se seguiram.

COMO O MILITARISMO PREJUDICOU A POLÍCIA CIVIL

  Quando o ditador Costa e Silva (1969) separou as atividades policiais, contrariando o que existe no resto do mundo civilizado, limitando a...